sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Entre o conto e o romance

Contista premiada, Lucia Bettencourt estreia no romance com O amor acontece (Record). Com prosa leve e diálogos ágeis, narra a história de amor (e humor) entre Fábio e Mariana, jovem escritora que se julga incapaz de se apaixonar. Mas à medida que escreve seu novo romance, ambientado em Veneza, é convencida por Fábio de que o amor ainda existe e pode acontecer até entre as páginas de um livro. Nesta entrevista, Lucia fala sobre conto e romance, suas inspirações e desafios como escritora. "Fiz questão de mostrar que a literatura nos leva a qualquer lugar do universo sem nos tirar de nossa poltrona preferida", revela.

O amor acontece é seu primeiro romance, depois de dois livros bem-sucedidos de contos. Por que mudar?
As editoras brasileiras implicam com o gênero "contos", apesar de nossa literatura ter uma tradição longa e vigorosa de extraordinários contistas. Cito apenas um, que acaba de ganhar o Prêmio Machado de Assis, conferido pela Academia Brasileira de Letras, e que nunca escreveu nada além do gênero - Dalton Trevisan. No entanto, os editores acreditam que é um gênero pouco comercial e insistem em perguntar se já não está na hora de um romance... Acabei satisfazendo a Editora Record.

O que este livro traz de novo à sua arte?
Gostei muito de escrever O amor acontece, pois é uma história leve, muito cheia de humor. Na verdade, ri muito ao escrevê-la. Mas também fiz longos trechos em diálogo direto, sem narrativa, quase que pequenas cenas teatrais, alternando-as com pequenos trechos narrativos da "autora" do romance. Minha presença se dilui, retirei-me de cena e dei voz a meus personagens, que me surpreenderam com sua vivacidade.

Qual a diferença essencial entre o conto e o romance? E como isso aconteceu na sua obra?
Esta diferença tem sido estudada por vários professores de literatura, e muitos falam da extensão da obra, outros falam de uma trama singular, poucas personagens, etc. Prefiro ficar ao lado dos escritores que deixam o trabalho de conceituação aos críticos, e limito-me a repetir Mário de Andrade, que dizia que conto é tudo aquilo que o autor chama de conto. Na verdade, existem quase que tantos tipos de contos como histórias a ser contadas... Bem, é um pouco de exagero, mas o conto varia, tem sub-gêneros (fantástico, de fadas, policial...). Gosto da linha seguida por Cortázar, de contos precisos como nocautes (é dele a ideia de comparar a leitura a uma luta de boxe, dizendo que um romance ganha o leitor por pontos, mas que o conto ganha por nocaute). Digo que escrevo contos porque sou curiosa e ansiosa: quero logo chegar ao final e descobrir o que acontece. Pois, apesar de ser a autora, são os personagens que conduzem minhas histórias.

De onde veio a inspiração para sua história (o amor, seus desencontros – e reencontros), seu cenário (Veneza) e seus personagens (Fábio e Mariana)?
Acredito em amor, vivi uma linda história de amor, e não posso compreender um mundo em que ele não tenha papel predominante. A Mariana, a princípio, perdeu as esperanças de encontrar um amor, não acredita mais em seu papel preponderante na vida. Só depois ela descobre que o amor é construído por nós mesmos, e não temos que ficar esperando que um príncipe encantado apareça e nos faça felizes. A felicidade é construída pelo próprio sujeito, mas é muito melhor quando compartilhada. A Veneza é um cenário, todo retirado de guia de viagens. Eu já tinha ido à cidade antes, mas nada do que escrevi tirei de minhas memórias. Fiz questão de mostrar que a literatura nos leva a qualquer lugar do universo sem nos tirar de nossa poltrona preferida... Fábio e Mariana são tirados da observação e de muitas leituras. Mas confesso que emprestei ao Fábio algumas características do meu marido, que foi meu grande amor por ser uma pessoa tão adorável como o Fábio.

Quais foram os prazeres e os desafios na hora de escrevê-la?
Como já disse antes, ri muito com o diálogo doido dos personagens, que não têm censura, falam o que lhes vem à cabeça. Como eu estava fora do texto deles, não apareço nem sequer em rubricas, pude deixar que tivessem toda a liberdade de que precisavam. Mas é muito difícil se conservar assim à parte em seu próprio texto, é uma coisa que a própria conversa entre Mariana e Fábio revela, essa tendência a dominar a vida de nossas criações. Mariana é, portanto, o meu contrário - controladora, ela impõe sua vontade e sua visão de mundo. Os personagens dela têm o final que ela deseja desde o princípio, e embora ela tenha sua vida modificada, não dá a mesma chance às suas criações. Creio que este é o maior desafio para um autor: deixar que a verdade de suas criações apareça no texto, apesar das suas próprias crenças.

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